Tipografia ribeirinha é arte que viaja de porto em porto e ancora no imaginário amazônico

Forjado nas memórias ribeirinhas, o ofício de abrir letras virou arte amazônica cheia de cor e vida.


Por Natália Mello, com fotos de Márcio Nagano. Revisão Carla Fischer

 

No dicionário, arte é definida de forma racional: “produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”. Mas, na Amazônia, a arte vai além da racionalidade. Afinal, como resumir à lógica as referências ancestrais ancoradas em um imaginário que data de bem mais do que 500 anos? Por isso, neste 15 de abril, Dia da Arte, a celebração é dedicada a mais um saber de rio: o dos chamados abridores de letras. 

A tipografia forjada nas águas e memórias dos ribeirinhos amazônicos ganhou força após uma determinação da Capitania dos Portos, em 1925, que observou a necessidade de identificar as embarcações para coibir atividades ilegais. Esse tecer da arte amazônica encantou seu José Augusto Amorim desde menino. Os macetes e as histórias por trás das cores de cada palavra travestiam a forma de um sonho: ser abridor de letras. Ver as letras flutuando rio acima, rio abaixo, viajando de porto em porto como marinheiras, foi o que encantou o abridor.

 

“Nasci em Barcarena e sempre ia à beira do rio ver os barcos passarem. Achava muito bonito e era meu sonho fazer as letras. Me mudei para Ponta de Pedras com meus pais lá pelos 12 anos e, quando cheguei, tive certeza: aqui vou me criar. Lá tem muito estaleiro e fui logo para a beirada perguntar como faziam, se contratavam. Me disseram que não tinham como me pagar e eu pedi só o almoço. Aí faria o trabalho que eles precisassem. Me colocavam para lixar massa, carregar madeira, fazia andaime para subir. Comecei assim", lembra. 

Augusto conta que, depois de algum tempo, o dono de uma embarcação perguntou se ele daria conta de fazer uma imagem na frente do barco. "Perguntei onde era e disse que cobrava R$40. Na época era um bom dinheiro. Me deu o papel, fui à loja comprar o pincel e ele foi almoçar. Quando voltou, estava pronto. Ele até brincou que  enganei ele, porque foi muito rápido", conta, sorrindo. 

Desde então, Augusto passou a viver do ofício. Criou os dois filhos, Matheus, de 24, e Carlos Augusto, de 21, a partir desse trabalho - ambos passaram a viver das letras. O saber desceu das embarcações e deu vida para outras formas. Rios, paisagens, tudo feito com um pincel. A maior obra do abridor, ele conta que foi feita há quase 20 anos, em uma igreja de Ponta de Pedras. “Essa igreja foi a primeira vez que desenhei uma paisagem grande. Tinha que fazer uma faixa de 12 metros de largura por seis metros de altura. Fiz tudo a pincel e até hoje está lá. É uma arca de Noé, com os bichos todos. 

Sonho é compartilhado

A manifestação autodidata e cultural é itinerante. As letras coloridas passaram a subir à proa dos barcos para flutuar rio acima, rio abaixo, como parte de uma tradição familiar - levando o nome do barco, o nome do pai ou da mãe de uma família. Mas as técnicas de abrir as letras variam entre os abridores. Diferente de Augusto, “Kekeu", como é conhecido Donnys Leal, de 33 anos, usa mais de um pincel para pintar. Mas o sonho de ser abridor parece ser o ponto de interseção entre os abridores. 

 

Natural do município de Muaná, no arquipélago do Marajó, ele faz parte da nova geração de abridores. Há oito anos atuando com o ofício, Kekeu já foi artesão, apanhador de açaí e trabalhou com a atividade de pesca. Mas foi na beira da avenida Tamandaré, como os ribeirinhos chamam carinhosamente as margens dos rios, que ele resolveu seguir o curso da vida com as letras.

“Quando cheguei aqui na Tamandaré, gostei do clima daqui, dos barcos, foi onde eu vi o meu mundo. Vi várias letras de alguns artistas que eu admirava e não conhecia, e aqui eu pude conhecer o artista. Então, a partir desse momento eu tomei uma atitude, decidi que eu iria arriscar a sorte. Antes eu era o cara que apanhava o açaí, que pescava. Essa é a vida ribeirinha do interior de Muaná, mas cheguei em Belém para minha esposa ter a minha filha e ali tudo mudou", afirma.

Na época, Kekeu estava desempregado e conta que entendia um pouco da técnica da pintura. Foi o suficiente para se juntar aos abridores da capital e começar esse trabalho ganhando por diária. Logo percebeu que era o suficiente para construir uma carreira. Mas, novamente, assim como Augusto, a inspiração veio da infância às margens dos rios, desta vez marajoaras.

“Lá no no rio onde eu morava passava um barco com o nome Bela Vista, e o pintor que pintava essas letras lá é o Junior. Então o Júnior foi aquela Inspiração, foi o cara em que eu me inspirei desde o início. E já aqui em Belém eu vim ter o privilégio de conhecer o Júnior e trabalhar junto com ele, de ganhar conhecimento com ele. E hoje eu tenho uma parceria com ele, com seu Rosi que é o cara que instruiu também o Júnior. Essa troca de conhecimento foi muito legal", destacou. 

Com o tempo e o domínio das técnicas, foi ganhando a sua clientela e, com a chegada do projeto Letras que Flutuam, a projeção profissional de Kekeu foi ainda maior. “Eu costumo falar que o nome do projeto que hoje é o nosso instituto foi escolhido a dedo. Porque as nossas letras flutuam pelos rios da Amazônia. Hoje estão aqui, amanhã estão em outra cidade. Então são realmente as letras que flutuam. E vir de lá do Marajó para cá, para mim foi um uma realização de um sonho de infância. Porque onde eu pintava, onde eu estava, o pouco que eu fazia, o meu desejo era um dia estar aqui", diz, se referindo a Belém.

Ao desembarcar no Ver-o-Peso, Kekeu não imaginava a história que esperava por ele. Dos barcos, sua arte passou a decorar estandes de lojas, fachadas e saiu das águas para decolar em direção a outras regiões que não a Amazônia. Para ele, a coragem foi o motor que acelerou a guinada nessa nova vida. Hoje, a sensação é de gratidão ao universo que as letras amazônicas possibilitam aos abridores.  

“A partir do momento em que eu chego no Ver-o-Peso e vejo um monte de barco com o meu letreiro, isso é a realização de um sonho. E não é mais só nos barcos, não é só mais no Pará. Já posso ver a minha letra viajando para outros países, como Portugal, e outros estados dentro do Brasil, como Rio de Janeiro, São Paulo. Então isso é uma realização para mim. Não importa o sacrifício, nós queremos saber de pintar", concluiu Kekeu.

Letras que flutuam - tipografia dos rios

 

Em 2004, a designer Fernanda Martins mergulhou nesse mundo quando tratou do assunto em sua monografia para a especialização no Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará (ICA/UFPA). De acordo com os levantamentos da pesquisadora, a prática iniciada em 1925 foi sendo desenvolvida e transmitida de geração em geração entre os ribeirinhos, de pais para filhos, muitas vezes aprendida na beira dos portos. Mais do que frases pintadas, ela lembra que podem também carregar nos nomes, além dos vínculos familiares, conexões religiosas.

Fernanda pontua que, a partir da década de 1940, os abridores de letras começaram a ter contato com referências tipográficas ao fazer cursos por correspondência no Instituto Universal Brasileiro. A partir disso, desenvolveram um estilo próprio, que só existe nesta região. “É importante compreender que essa é uma manifestação eminentemente amazônica e ribeirinha. Não se trata de tipografia, nem de caligrafia, pois a tipografia é um sistema que utiliza caracteres idênticos para reproduzir textos. O que eles fazem são letreiros pintados à mão. É um tipo de lettering*, uma tradição que transforma os barcos em imagens. São letras para serem vistas, uma poética visual mais do que textual. Essas letras transformam as embarcações em elementos identitários. Trata-se de uma tradição estética conectada a outras tradições amazônicas e que expressa o modo de ser amazônida", ressalta.

Para a designer, é preciso entender que essa é uma tradição cultural específica da região amazônica e, por isso, é fundamental reconhecê-la como uma expressão que precisa ser valorizada e respeitada. “A visibilidade que ela vem ganhando atualmente é extremamente positiva: contribui para que o Brasil conheça melhor suas próprias características e identidades; é importante para o Pará e para a Amazônia; e, principalmente, é fundamental para os abridores de letras, que até 2004 eram completamente invisibilizados", diz. 

“Vejo muitas pessoas defendendo os direitos autorais quando se trata de inteligência artificial, argumentando que ela não pode copiar o estilo de um artista. Mas, ao mesmo tempo, vejo estilistas de São Paulo reproduzindo os estilos dos abridores de letras da Amazônia sem o mesmo tipo de crítica", complementou. O projeto mapeia esses profissionais em diversos municípios ribeirinhos, nas regiões de Santarém, Marajó, Belém e Salgado, todos no estado do Pará

Na monografia de 2008, Fernanda denominou o estilo como “Letras Decorativas Amazônicas”, devido à inspiração nas letras decorativas do século XIX, especialmente nas serifas toscanas, um movimento que surgiu com a popularização da tipografia e o surgimento de uma estética influenciada diretamente pelos trabalhadores do chão de fábrica.

“Hoje, os saberes dos abridores de letras estão em evidência. No entanto, o efeito perverso disso é que eles não estão sendo beneficiados com essa ampla divulgação. Trata-se de uma tradição local, amazônica e ribeirinha, mas empresas e agências de publicidade vêm se apropriando desse valor para vender produtos, sem repassar benefícios a quem realmente detém esse saber", destaca. É norteado na contramão dessa tendência que atua o Instituto Letras que Flutuam, fruto de 20 anos de pesquisa. 

Atualmente, a instituição conta com 30 abridores de letras associados e busca incluí-los de forma justa na lógica do mercado. “Queremos que as ações comerciais beneficiem esses profissionais, para que possam continuar seu trabalho e sair da linha da pobreza. A tradição de abrir letras é um patrimônio imaterial paraense e amazônico que merece ser reconhecido, valorizado, e que, infelizmente, o mercado ainda não tem tratado com o devido respeito", finaliza Fernanda. 

Com a institucionalização do ofício no Letras que Flutuam, os abridores de letras passaram a ter autonomia em seus negócios e explorar maneiras de vender produtos personalizados. Como empreendedores da arte, trabalham produzindo, além da pintura de embarcações, quadros, camisas e outros objetos, como cadernos e bloquinhos decorados com as letras amazônicas.

Patrimônio cultural

Tramita na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) um projeto de lei de autoria do deputado Carlos Bordalo (PT) que visa a declaração e o reconhecimento do saber tradicional dos (as) abridores (as) letra de municípios ribeirinhos do Pará - bem como as letras de barco resultado dessa prática tradicional e particular de escrever como Patrimônio Cultural Imaterial. A matéria foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e Redação Final e aguarda apreciação parlamentar. 

Saiba mais sobre o Instituto Letras que Flutuam aqui:

https://www.letrasqflutuam.com.br/ 

 

*Lettering é a arte de desenhar letras e palavras, em vez de apenas escrevê-las.

 

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