Com “bike som” e escada, professor reúne centenas nas ruas e reconta a história de Belém a partir das pessoas

Historiador e professor, Michel Pinho leva cada vez mais moradores e turistas em “passeios-aula” e aborda a influência de povos indígenas e africanos ao longo da colonização portuguesa na capital paraense


Reportagem de Daniel Nardin, com imagens de Marcio Nagano

Subitamente, o burburinho se dissipa. O silêncio incomum num ajuntamento de quase mil pessoas é quebrado com a saudação e as primeiras instruções do professor Michel Pinho, que tem a potência da voz ampliada com a ajuda das caixas de som acopladas em uma bicicleta, a “bike som”, bastante comum no comércio e nas periferias de Belém.

A calmaria típica das manhãs de domingo nas ruas estreitas do bairro da Cidade Velha, na capital paraense, é substituída com os passos e a movimentação para mais uma edição de uma aula pública - e gratuita - de história sobre a cidade. Ao longo de uma hora e meia, são seis paradas e em cada uma delas Michel traz diferentes perspectivas que traduzem um pouco da pluralidade da identidade dos moradores atuais da Belém de 409 anos - completos neste 12 de janeiro de 2025 - e de mais de 1,3 milhão de habitantes

História feita de gente - A aula inicia pontualmente às 8h30, em frente ao Palácio Lauro Sodré, que hoje abriga o Museu do Estado do Pará e já foi a sede do poder executivo estadual. Do alto de uma pequena escada de três degraus, as primeiras lições não são protocolares ou carregadas de lugar-comum. “Hoje Belém completa 409 anos. Mas precisamos compreender e reconhecer que são quatro séculos do início da ocupação portuguesa e não de fundação da cidade, já que nesta área já tínhamos a presença do povo Tupinambá, com três aldeias apenas nesta área central. A história de Belém não inicia em 1616 e sim começa ali mais um dos muitos capítulos de sua história”, explica Michel.

As construções, que geralmente são utilizadas por guias para contar a história de um lugar, servem apenas de pano de fundo ou contexto para a narrativa do professor. Na lateral do Palácio Lauro Sodré, ele apresenta uma pequena porta que atualmente é pouco lembrada durante o período do Círio de Nazaré, festividade religiosa e cultural que leva todos os anos mais de dois milhões de pessoas às ruas da capital paraense em outubro. O professor relembra as origens da devoção popular e como ela foi incorporada pela classe política e pelo clero - níveis mais altos da igreja católica - iniciando uma história que já possui mais de 200 anos

Na sequência do passeio-aula, a terceira parada emociona muitos dos “alunos”. Em frente à Igreja de São João Batista, Michel aborda o sincretismo religioso. O professor aproveita o equipamento de som para reproduzir alguns áudios. Entre eles, o batuque e o início da canção “Chama Verequete”, do Mestre Verequete, falecido em 2009, bastante conhecido por quem já teve contato com a música paraense. 

“Muitos acham que é carimbó, mas é mais que isso. É tambor de Mina e Verequete é uma menção ao vodum Verequete, que é chamado para a roda. Isso traduz um pouco da forte influência do povo africano na nossa cidade, que resiste e é vivido fortemente hoje”, destaca Michel. Durante a parada, Michel relembra que a história da presença - e da cruel exploração - dos povos africanos escravizados em Belém e no Brasil sofreu e ainda sofre uma tentativa de apagamento. Para a professora Adriana Remédio, esse foi um dos momentos mais marcantes do passeio, especialmente por ser de família de origem quilombola. 

“Foi impactante. Num ponto ele comentou que mais de 52% da população era de negros escravizados. Então, Belém tem uma história de sofrimento, mas também de beleza. Conhecer mais a presença do negro aqui toca muito meu coração, tem muito da minha família. Hoje escutei um pouco da minha raiz e me emocionou muito. É uma história pouco contada e que precisamos conhecer mais e levar adiante para as novas gerações”, disse.

Pouco adiante, uma nova parada, em frente ao Solar do Barão do Guajará, traz um pouco da história do movimento da Cabanagem, que viveu seus momentos mais intensos e tensos justamente nesse pedaço de Belém, embora tenha se espalhado por vários municípios do interior, especialmente no período de 1830-1840. 

Michel mescla a história com histórias e curiosidades, mantendo o silêncio, os olhares e atenção de um público que só aumenta, apesar da rápida chuva seguida por um sol cada vez mais intenso. “É importante conhecer mais e procurar leituras pois a história da Cabanagem incomoda muita gente. É a única revolta popular que de fato tomou o poder no Brasil e isso, para muita gente do poder, é motivo de preocupação”, destaca Michel. 

A penúltima pausa da caminhada é um clássico do turismo na cidade. Tendo ao fundo o Forte do Presépio, Michel conta então o início da ocupação do território pelos portugueses, numa área que hoje é conhecida como complexo Feliz Lusitânia, em referência à chegada dos portugueses e que abriga o equipamento militar que remonta ao período de 1616, a Igreja da Sé, a igreja de Santo Alexandre (que abriga o Museu de Arte Sacra) e a Casa das Onze Janelas. Um local de parada obrigatória para turistas que conhecem a cidade, mas agora um ponto de conhecimento para os quase mil alunos que buscam re-conhecer o próprio lar. 

Foi o desejo de ter mais contato de forma aprofundada com a história da cidade em que vivem que o casal Maria Helena Oliveira e Vitor Moia decidiu seguir direto de uma corrida de rua em comemoração ao aniversário da cidade para a aula-passeio. “Coincidiu os horários e ficamos muito felizes em estar aqui. Aprendemos coisas que, mesmo sendo daqui, a gente não conhece. É uma iniciativa diferenciada e que vale a pena”, comenta a advogada. 

Durante o trajeto, Michel Pinho aproveita para comentar que começou o projeto ainda em 1999, quando dava aulas em Marabá, no interior do Pará e distante quase 500 quilômetros de Belém. “Percebi que os alunos não conheciam a história de sua capital e conseguimos um ônibus para trazer eles para cá. A experiência foi boa e fizemos algo parecido também por lá. Depois, quando retornei para minha cidade, decidi retomar essa ideia e começamos aos poucos, com grupos menores e hoje tomou uma dimensão que não esperava”, comenta Michel, enxugando o suor causado pela caminhada e pelo sol forte das 10 da manhã, quando o passeio foi encerrado, já na Praça do Carmo.

Mais alguns metros e a aula-passeio chega ao fim, na Praça do Carmo, em frente à Igreja do Carmo, que possui a única fachada do Brasil construída somente com pedras importadas de Portugal, como ensina Michel. Mantida pela ordem das carmelitas, o local serve para Michel também comentar sobre a influência e importância das ordens religiosas na construção da cidade. 

Após uma longa sequência de aplausos, o professor separa um tempo para um momento que tem sido cada vez mais comum, embora ainda cause surpresa e até estranhamento. Uma pequena fila se forma para selfies e fotos, tal como um artista. “É algo novo para mim e creio que vem muito por conta das redes sociais, que comecei a produzir conteúdo sobre a história e curiosidades e isso fez aumentar gradativamente o número de pessoas nas aulas. Hoje, foi o meu maior público e nunca dei aula para tanta gente, o que emociona demais”, comenta Michel.

Aulas públicas pelas ruas - Michel conta que o desejo de fazer mais pessoas conhecerem e valorizarem a história da cidade ganhou um novo impulso com a internet e as redes sociais, mas reforçou a importância da figura do professor. “Nessa era do conhecimento que vivemos, a gente precisa ter a internet, precisa ter os documentos, mas a gente precisa também do professor. É ele que faz esse diálogo entre o conhecimento científico e as pessoas. E incluímos no roteiro essa abordagem da perspectiva que mostra o quanto a formação histórica da cidade vai muito além da presença europeia e temos uma forte presença dos indígenas e povos africanos, que ajuda a compreender uma Belém que é plural e múltipla”, ensina. 

Uma das seguidoras de Michel que aproveitou a estadia em Belém para assistir à aula foi a comissária de bordo Leoniza Liberato. Acompanhada do marido paraense, Luiz Costa, Leoniza é natural de Fortaleza (Ceará), mas apaixonada pela cultura e história de Belém. “Acompanho o Michel nas redes sociais e quando vi que teria a aula, não tive dúvidas e nos programamos para estar aqui. É um momento tão rico que nem conseguimos dimensionar. Essa iniciativa dele tem que ser valorizada pois ajuda a fortalecer a identidade da cidade e dá muito orgulho mesmo dessa história tão rica e diversa”, diz. 

O público recorde de quase mil pessoas é também diverso. Idosos, adultos, adolescentes e crianças. Nesta edição, Michel contou ainda com tradutores em libras e audiodescrição, o que atraiu novos públicos de pessoas com deficiência, tornando as aulas não só inclusivas, mas também mais acessíveis. 

A professora Marília Moreira reforça o quanto o aprendizado serve como uma aula de cidadania. “É importante que a gente conheça mais nossa história para que a gente não repita erros do passado e tenha outras lutas, novas lutas e não retroceda. É uma forma também de aproveitar isso em minhas aulas e em conversas com amigos que vem de fora e precisam saber mais sobre nossa riqueza cultural e de nossa gente”, disse.

A pluralidade de faixas etárias e a diversidade do público é tão evidente quanto o ponto comum que leva essa multidão para as ruas num domingo de manhã: o desejo de conhecer mais e espalhar para outros uma história pouco contada de Belém. Ainda mais numa época em que Belém está tão em evidência, por conta das questões amazônicas e por receber a 30a edição da Conferência das Partes da ONU (COP) para mudanças climáticas, em novembro deste ano. 

É nesse contexto atual que a iniciativa de Michel Pinho ganha ainda mais relevância, enfrentando o fato de que muita gente não conhece a história da própria cidade. Segundo ele, esse ponto não foi visto como um problema e sim um desejo, como cidadão, morador da cidade e historiador. “Temos essa possibilidade da gente entender a cidade com uma cidade que abraça, então esse o meu maior desejo: que as pessoas sejam abraçadas e que a gente exerça a nossa cidadania de uma forma plena, especialmente num momento em que Belém vai ser vista pelo mundo, mas que Belém e quem mora na Amazônia seja escutado, eu acho que isso é o mais importante”, reflete.

Gostou do Conteúdo? Compartilhe nas suas redes sociais: