Um olhar para o sagrado marginal da Amazônia Urbana paraense diante as mudanças climáticas

2024-10-22 18:00:00

Artigo de opinião, por Wagner Cardoso*

A Amazônia Paraense tem uma diversidade biológica e cultural abrangente em seu território, abrigando comunidades tradicionais em múltiplas Amazônias, que, apesar de marginalizadas, oferecem conhecimentos de suma importância para a preservação ambiental, especialmente diante das mudanças climáticas que vêm ocorrendo no país. 

Desde a fundação do centro urbano de Belém no século XVII, a cidade e suas áreas circundantes foram moldadas por interações complexas entre colonizadores e populações indígenas, que envolveram uma série de dinâmicas de dominação, resistência, e trocas culturais, como a construção da identidade cabocla, conflitos e resistência territorial, etnocídio, escravização, entre outros fatores sócio-políticos. 

Atualmente, sua cultura majoritariamente traz uma reflexão de descaso com a região. Mais do que a metade da população se sente em condições de subjugar as florestas e os povos que as habitam, fazendo prevalecer seus modos de ser e fazer a vida - Sendo impulsionadas por esses eventos históricos que marcaram a trajetória da cidade, pautada nos aspectos do antropocentrismo. 


Wagner Correa Cardoso está cadastrado no banco de fontes do Amazônia Vox. Confira aqui esta e outras fontes de conhecimento da região.


No entanto, este processo do crescimento urbano desenfreado na região, a falta de saneamento básico adequado e o desmatamento intensificado têm causado sérios impactos ambientais, acarretando consequências significativas nas mudanças da paisagem e do ecossistema natural, comprometendo a sustentabilidade e, consequentemente, a saúde da população.

É nesta perspectiva que as práticas das comunidades tradicionais religiosas da região se destacam, lançando um olhar de reflexão sobre a importância da coexistência com a natureza. Partindo desse pressuposto, pode categorizar comunidade em um grupo de pessoas que compartilham uma organização social em comum. Os povos da floresta, dos campos e das águas são exemplos de comunidades tradicionais, cuja estrutura cultural possui uma identidade intrinsecamente conectada ao ambiente natural em que vivem. Essas comunidades têm sua própria organização social em relação à sociedade civil. Como exemplos, podemos citar as quebradeiras de coco, pescadores, ribeirinhos, extrativistas, etc. Dentro dessas, há comunidades tradicionais que se estabelecem a partir de uma cultura religiosa, as quais valorizam a preservação e transmissão de saberes por meio da fé e oralidade, que atravessam gerações. 

Tambor de Mina e Pajelança Cabocla

Para compreender esse contexto, é importante destacar duas comunidades religiosas tradicionais que, além de outras, enfrentam invisibilidade e lutam pela resistência nos espaços marginalizados, da sua cultura diante dos processos de globalização.

A primeira é o Tambor de Mina, uma religião com raízes na cultura afro dos povos Jeje-Fon, além de influências indígenas e europeias, que surgiu na Amazônia Maranhense no início do século XIX e se expandiu para o Pará. Seu culto é centrado em seres espirituais, como Voduns, Orixás e Encantados, e suas celebrações ocorrem em terreiros ou gumes.

A segunda é a Pajelança Cabocla, que surge, primariamente, nas interações entre indígenas e portugueses no Pará. Essa fé tem como tradição o curandeirismo e o contato espiritual com os seres encantados chamados Caruanas, que representam elementos da natureza, como os animais e as plantas.

Essas comunidades, tanto o Tambor de Mina e a Pajelança Cabocla, têm em comum sua cosmo-percepção enraizada, onde o sagrado e o natural são inseparáveis. Não como um recurso a ser explorado, mas como parte integrante da vida e da identidade de seus praticantes, uma visão pautada no biocentrismo. 

O sagrado é visto na fauna, flora e os ecossistemas como um todo, eles são lares de seres encantados e voduns, considerados guardiões da floresta, mantendo um equilíbrio que é fundamental para a sobrevivência tanto da natureza quanto dos seres humanos, promovendo a convivência harmônica por meio da eco-espiritualidade e ensinando formas sustentáveis de habitar e proteger seus territórios.

Essa visão contrasta com a abordagem dominante de exploração e consumo, que tem levado a uma crise ambiental crescente. A região da Amazônia Paraense produz em média mil toneladas de resíduos por dia, tendo seu descarte incorreto, além de uma exploração econômica desenfreada de seus recursos em áreas preservadas, sendo o desmatamento e queimadas ficando cada vez mais intensas arredores, assim como as mudanças climática que vêm afetando principalmente as populações periféricas e marginais deste território, que dependem diretamente de recursos e políticas públicas eficientes para sua sobrevivência. 

A marginalização das práticas de comunidades tradicionais religiosas amazônicas reflete um processo de silenciamento do sagrado que resulta, em grande parte, de um colonialismo cultural. Esse fenômeno desassocia o homem da terra e do ambiente ao seu redor, promovendo uma perda de identidade e desconexão com suas raízes ancestrais que sempre ligaram esses povos ao equilíbrio ecológico. A espiritualidade dessas comunidades está intimamente ligada aos ecossistemas naturais, visto que consideram esses elementos não apenas como biorecursos, mas como entidades vivas, com as quais mantêm uma relação de afeto e reciprocidade.

Relação do sagrado com o meio ambiente

No contexto de preservação ambiental, podemos ver o respeito aos lugares sagrados da floresta, como rios, montanhas ou áreas específicas que não podem ser desmatadas ou poluídas por serem morada de encantados. Esses lugares são preservados não apenas por sua importância espiritual, mas também como forma de manter o equilíbrio dos ecossistemas locais. A crença no sagrado da natureza impede práticas predatórias e incentiva o uso sustentável dos recursos, o que contribui para  uma organicidade  contínua desses espaços. 

Além disso, o uso das ervas e raízes, os famosos banhos de cheiros e beberagens, são usadas não apenas por suas propriedades curativas ou religiosas, mas também pelo entendimento do equilíbrio com o corpo e o espírito. Pautar a saúde em uma visão holística em colaboração da medicina tradicional com a moderna, é garantir a preservação desses sujeitos, entender que o corpo humano está em um ciclo natural, sua valorização e  entendimento que por não ser a extração predatória, os recursos estejam disponíveis para as gerações futuras.

O respeito ao ciclo da vida e à morte dentro dessas tradições mostra que a preservação do corpo vai além do indivíduo, conectando-o à ancestralidade e ao ciclo contínuo da natureza. Ao resgatar essas memórias e integrar esses conhecimentos à busca por um sistema eco-sociocultural, as comunidades podem reafirmar sua identidade e restabelecer uma conexão com o território. A identificação com o território transforma o ambiente natural de um simples recurso em uma extensão do lar, algo a ser cuidado e preservado. Essa visão cria um senso de pertencimento e responsabilidade, essencial para a relação com o meio ambiente.

A juventude Amazônida têm o desafio de reconquistar esses espaços e reafirmar suas identidades culturais, o que, por sua vez, contribuirá para a preservação da região. Ao dar voz a essas comunidades e reconhecer o valor de sua cosmovisão, estaremos não apenas protegendo esses territórios, mas também fortalecendo nossa própria identidade e garantindo um futuro de uma floresta em pé.

Para entender o mundo atual e a nossa própria identidade, não basta analisar apenas os acontecimentos presentes. É fundamental explorar nossas origens e raízes históricas, culturais e biológicas, nossa matriz biocultural, a qual refere-se à interconexão entre a cultura e o ambiente natural, indicando que nosso modo de vida e nossas crenças são moldados tanto pela natureza quanto pela cultura ao longo do tempo. Compreender o passado e essas conexões nos ajuda a entender melhor quem somos e o mundo em que vivemos.

Para Paes Loureiro, em seu livro “Cultura Amazônica: uma poética do imaginário”, é o que caracteriza o ser caboclo, Amazônida, viver em coexistência com esta natureza e seus habitantes, entender como parte de nossa realidade, esta  é a identidade regional pós período colonial, que resiste em sua existência.

*Wagner Cardoso é artivista, pesquisador, educador e pós-graduando em educação ambiental e sustentabilidade, tem experiências investigativas sobre identidade, cultura e etnoecologia nas comunidades tradicionais e originárias da Amazônia Paraense.

Foto: Agência Brasil

Gostou do Conteúdo? Compartilhe nas suas redes sociais: